A recente prisão de militares, amplamente divulgada na mídia, levanta sérias questões sobre o uso do Direito Penal no Brasil. A análise dos eventos e das justificativas apresentadas para as prisões sugere uma desconexão com os princípios básicos da legislação penal brasileira, colocando em dúvida a aderência aos preceitos do que deveria ser um Estado Democrático de Direito.
No Direito Penal, existem limites claros sobre o que pode ou não ser punido. O primeiro ponto a ser observado é que a fase de cogitação de um crime não é passível de punição. Em outras palavras, pensamentos ou intenções, por mais graves que sejam, não constituem crime se não forem acompanhados de atos concretos que visem à realização do delito. Assim, imaginar um ato criminoso, sem tomar qualquer medida prática para realizá-lo, não pode justificar uma ação penal.
Além disso, os atos preparatórios de um crime, de maneira geral, também não são punidos. Existem exceções a essa regra, mas estas devem ser expressamente previstas em lei, como é o caso específico do crime de terrorismo. A ausência de uma base legal clara para justificar a punição por atos preparatórios levanta dúvidas sobre a legalidade de algumas das prisões que estão sendo efetuadas.
Outro princípio fundamental do Direito Penal é que, se alguém inicia a prática de um crime, mas interrompe a ação antes de causar qualquer resultado, essa pessoa não pode ser punida além do que realmente fez. Se as ações realizadas até aquele ponto não configuram um crime, então não há razão para responsabilização. Este princípio parece estar sendo ignorado, pois muitas das acusações recentes baseiam-se em suposições ou em etapas não concluídas de um suposto plano.
Ainda mais preocupante é o uso da figura do "mandante" em casos de crimes intelectuais. Para que alguém seja considerado autor intelectual de um delito, é necessário comprovar que essa pessoa ordenou ou induziu decisivamente outras a agirem. Beneficiar-se de uma ação criminosa, por si só, não é suficiente para atribuir responsabilidade. Contudo, as alegações que vêm sendo apresentadas parecem depender mais de presunções do que de provas concretas, o que mina a credibilidade do processo.
Outra questão relevante é a caracterização de associação criminosa. Para que esta seja configurada, é necessário que haja um vínculo permanente e estável entre os envolvidos, com a intenção de praticar múltiplos delitos. Uma reunião ocasional para cometer um único crime não caracteriza associação criminosa; neste caso, trata-se apenas de um concurso de pessoas. Essa diferenciação é ignorada em várias das acusações, o que reforça a percepção de que há uma interpretação criativa da lei.
Por fim, uma das mais flagrantes violações de princípios jurídicos é permitir que a pretensa vítima de um crime atue como juiz da causa. Este cenário é inadmissível no Direito Penal, pois compromete a imparcialidade necessária para que o julgamento seja justo. No entanto, é exatamente isso que se observa em algumas das situações recentes, onde o papel de vítima e julgador parece estar sendo indevidamente mesclado.
A conjuntura atual demonstra uma aplicação seletiva e distorcida do Direito Penal, que ignora princípios fundamentais e compromete a segurança jurídica. Em vez de garantir a justiça, o sistema parece estar sendo utilizado como um instrumento para atender a interesses específicos. Essa realidade leva à percepção de que o Direito Penal, tal como o conhecemos, está sendo desfigurado.
A sensação predominante entre os observadores é de que o "Estado Democrático de Direito" está sendo esvaziado de significado, restando apenas o "Estado" em si, com suas estruturas de poder cada vez mais centralizadas e afastadas dos valores que deveriam nortear a Justiça. Este contexto não só compromete a credibilidade das instituições, mas também ameaça os direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos.
A situação demanda uma reflexão profunda sobre o papel do Direito Penal e a forma como ele vem sendo aplicado. É necessário restabelecer o equilíbrio e a observância dos princípios básicos que garantem a justiça e a imparcialidade. A sociedade não pode permitir que a interpretação criativa da lei substitua a aplicação correta e rigorosa dos seus preceitos. Sem isso, o que resta do Estado Democrático de Direito é apenas uma casca vazia, incapaz de proteger os direitos individuais e promover o bem comum.